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18 de mar. de 2009

O Ícaro de cada dia


Assim como Ícaro, que pôs sua confiança em cera que derrete, somos tentados a nos afastar de Deus, o único que pode nos fazer voar.
A ilha grega de Creta ajuda a mitologia a encontrar-se com a História. Antes de navegar pelo Egeu, embarcando em Atenas, tinha visto no centro da cidade uma escultura deslumbrante de Ícaro, que tentou voar, grudando com cera asas artificiais em seu corpo. Funcionou, por algum tempo. Mas em contato com o sol, a cera derreteu-se e Ícaro despencou no mar. Em Creta, num dos seus pontos mais altos, existe uma intrigante rampa. A rampa de Ícaro.
O historiador francês Jean-Pierre Vernant observa que na Grécia todos os atos do cotidiano eram marcados pela religiosidade. Os gregos nos deixaram o sentimento de comunidade. O que deve unir os seres humanos está no mito de Protágoras: “Prometeu e seu irmão Epimeteu são encarregados de dotar cada espécie animal da forma, das qualidades e das forças que vão caracterizá-la. Eles tomam o cuidado de fazer com que essas qualidades se equilibrem. Se um animal ganha força e tamanho, ele não terá rapidez. Se ele é mais frágil, será dotado de rapidez, ou da capacidade de voar, para que possa sobreviver”. O homem surge desarmado, diz Vernant, mas não desaparece em razão da sua fragilidade, porque é dotado de saberes que compensam aquilo que lhe falta.
Só não podemos trocar ou recuperar nossa vida. Aquiles disse isso para Agamenon. Claro que para nós existe a perspectiva do transcendente, questão de fé, pois a conquista da vida eterna está atrelada a aceitarmos Cristo como nosso Senhor e Salvador.
Mito e História se encontram. As Escrituras nos ensinam que o ser humano é o coroamento da criação. Em algumas passagens, o estilo de narrativa é assemelhado, o que literariamente é absolutamente normal. O mitológico Ícaro quis conquistar as alturas. Nós também. Ícaro quis subir, subir. Nós também. Ícaro pôs a sua confiança na cera que derrete. Também podemos ser tentados a fazer a mesma coisa. E Ícaro caiu, como nós também caímos. Exatamente por isso, a palavra “sincero” tem sua origem na expressão “sem cera”. Assim, o sem cera, ou sincero, é alguém que não usa artifícios, não engana, não dissimula, sempre autêntico, sem disfarces.
Se quisermos ir para o alto, com asas artificiais dependentes da cera, temos que aprender, preliminarmente, que as montanhas tinham conquistado a humanidade muito antes de os seres humanos pensarem em conquistá-las. Os gregos acreditaram no Olimpo, cume elevado que seria a morada dos deuses. A torre de Babel é um dos símbolos do Antigo Testamento que mostra o esforço do homem em invadir território divino. As pirâmides mostram que quando não tinham montanhas naturais, os povos construíam artificiais. O único Deus que podemos encontrar nos altos é aquele que nos acompanha até lá. Chamamos a isso onipresença, estar em toda parte, uma das características do Altíssimo, e desfrutar, em qualquer lugar, do encontro íntimo com Deus.
Assim, e pela fé sabemos que é. Ícaro pode ser o nosso próprio mito e Creta a nossa terra. Quem insiste em usar cera para voar, pode contribuir para nosso país continuar como está. Mais cedo ou mais tarde, vai despencar. A rampa de Creta é desnecessária. Deus nos ajuda a voar e a subir. Não precisamos de cera. De corações sinceros, sim.
Percival de Souza
Revista Eclésia

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